OS
DONS DA COMISSÃO DA VERDADE DE PERNAMBUCO
Otávio Luiz Machado*
Ao falar da
Comissão da Verdade de Pernambuco podemos falar de vários “dons”, que
utilizamos aqui no sentido da dádiva, da retribuição. O Dom Helder que dá o
nome à Comissão é uma dessas dádivas, porque foi um dos artífices mais
completos na resistência à ditadura civil-militar de 1964: foi combatente e
combatido, reagiu à violência com paz e sabedoria e semeou o universo onde as coisas era tratada, com armas,
prisões, torturas, mortes e desaparecimentos, ora com sua palavra, ora com o
seu silêncio ao qual foi obrigado a manter num determinado tempo, que queiramos
ou não, Dom tinha uma força extraordinária de transformar o seu silêncio forçado
algo contra a própria ditadura.
Na sessão
dedicada ao caso da morte de Odijas Carvalho (estudante da UFRPE e militante
político que lutava contra a ditadura civil-militar) no dia 18 de outubro de
2012 passei a perceber que alguns dons se sobressaiam, que na minha visão
estavam adormecidos até então. O primeiro foi o de ouvir as pessoas frente a
frente, o que foi possível numa simples rearrumação dos móveis e do espaço
dedicado à sessão da coleta de depoimentos. Isso já apontava em artigo anterior
no Blog de Jamildo/JC.
É bom dizer que o ponto alto dessa
sessão foi o depoimento das testemunhas do assassinato de Odijas após longa
jornada de torturas e suplícios. As falas trataram de questões como ditadura e democracia, da dor do ser
humano e do idealismo daquelas
juventudes etc, o que contemplou a todos que estiveram presentes. Falo que foi
uma sessão completa, porque lições estiveram disponíveis ali para quem independentemente pertencesse a
uma classe social, um partido ou organização política qual fosse ela no passado
ou é na atualidade, para todas as faixas
de idade que puderam assistir esse momento importante da Comissão.
Um documento que me foi entregue pelo
membro da comissão Pedro Eurico após o término da sessão também me
impressionou, porque lista quem era na época do assassinato de Odijas (dia 08
de fevereiro de 1971) o presidente da República, o governador de Pernambuco, o
secretário de segurança pública estadual, o diretor do DOPS (Departamento de
Ordem Política e Social) e os delegados de segurança social, de roubos e furtos
e da delegacia de acidentes.
É trazido aí um
contexto histórico importante, o que nos leva a refletir sobre as
circunstâncias históricas, quem era quem no comando político do País-Estado e
quais órgãos que praticavam repressão estavam em ação ou atividade.
Todas as
pessoas que prestaram depoimento nessa sessão estavam presas e de alguma forma
testemunharam as torturas que levam à morte Odijas Carvalho. Alberto Vinícius
conta que acordou quando houve uma grande movimentação no DOPS para realizar um
interrogatório a Odijas acompanhado da selvageria da tortura. Falou que Odijas
passava diante de sua cela quando era levado ao banheiro para tomar um banho
para se livrar do sangue e para ser “despertado” para poder voltar “novo” para
novas sessões de tortura. Falou da grev fome que fizeram assim que souberam
dias depois da morte de Odijas, bem como um documento encaminhado a Dom Helder
denunciando as circunstâncias da morte. Fez um relato impressionante de quando
entregou uma calça a Odijas para que trocasse a que vestia (toda embebida em
sangue). Falou que “era comum os delegados torturarem os presos políticos”.
Falou e apresentou dados e documentos importantes à Comissão e ao público
presente, como a carta que fez anos depois quando estava preso em Itamaracá (de
27 de outubro de 1978) contando os detalhes e apresentando os nomes dos
torturadores.
Já na sabatina, Pedro Eurico lembrou
que foi com a mãe de Odijas visitá-lo na prisão, após a quebra da
incomunicabilidade dele. A mãe de Odijas portava um terço, sendo constrangida e
intimidada pelo delegado Silvestre, que mostrou uma arma dizendo para a mãe que
a bíblia do seu filho era a arma. A tentativa de desmoralizar o filho na
presença da mãe representou uma sessão
de tortura contra uma mãe, conforme analisou Pedro Eurico.
O depoente
Tarzan de Castro disse que Odijas “foi escolhido para ser o mais torturado
(...) foi um barbarismo continuado”. Disse que Odijas vez ou outra era levado
para sua cela para dar uma “descansada” das torturas. Numa dessas ocasiões
Odijas disse a ele o seguinte:
“Companheiro, eu não estou aguentando. Vão me matar”. Tarzan tentava
passar energia a ele nesse momento. A pancadaria contra Odijas era tão grande
que até dava para ouvir: “a voracidade de bater era tanta que eu contava as
pancadas alto: 10, 20, 40, 50 e perdia de vista”.
Tarzan resumiu
o ambiente da ditadura assim: “o ser humano é brutal quando decide exercer a
brutalidade”. O que pode ser percebido no que disse, quando os agentes passavam
diante da sua cela: “eles suavam e transpiravam” diante do sadismo. “O silêncio
dele causava o ódio dos torturadores”. Mas que a dignidade dele podia ser
percebida na forma como enfrentou a tortura.
O depoimento de
Maria Cristina Rizzi também foi marcado pela emoção. Cristina é muito conhecida
porque em uma das prisões foi colega de
Dilma numa cela, onde construiu uma grande amizade mesmo no clima de dor e sofrimento
da prisão e das torturas.
Cristina falou desde o momento de que
viu Odijas na prisão. Era um jovem com um calção que apresentava muita saúde. Atestou
tempos depois um jovem todo esmagado que sangrava pela boca sendo carregado por
dois “homens”, quando na ocasião Odijas ainda conseguiu pronunciar algo para
ela: “Eu sou Odijas Carvalho. Meu nome é Odijas Carvalho”. Ela nunca mais o viu
vivo. A repressão o matou após muitas torturas.
Foi uma sessão
que houve diálogo produtivo, porque todos se prepararam. Foi atestado e
reforçado o que todos já sabiam, como o sadismo dos torturadores, como Miranda,
“que percorria todos os cenários da tortura”.
O membro
Henrique Mariano durante a sessão levantou bem a questão da participação de Dom
Helder na denúncia internacional do assassinato de Odijas. Disse que “a verdade
foi violada, mas não foi abalada”. A primeira denúncia levada a Dom foi num
papel de cigarro. A greve de fome para denunciar a morte de Odijas foi outro
fato importante à época.
A membro da Comissão Socorro Ferraz
disse algo importante sobre o bilhete levado a Dom Helder: “o documento salvou
outros e eles próprios”, porque o caso repercutiu e colocou à ditadura numa
situação complicada perante os outros países.
A sessão só
reforçou que nas ditaduras os crimes contra os direitos humanos não só ocorrem
com a brutalidade física, mas atos de covardia e de abusos por meio de mentiras
e versões fraudadas dos fatos. Só iremos avançar quando a democracia superar
esses resquícios de autoritarismo que ainda estão muito presentes no nosso cotidiano.
*É educador, pesquisador, escritor e
documentarista. E-mail: otaviomachado3@yahoo.com.br
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