O número de
lançamento da Revista na comemoração dos 50
anos e o avanço na histografia sobre sua própria origem
* Otávio Luiz
Machado
Após
fazer uma leitura criteriosa de dois números da Revista Estudos Universitários,
o da refundação publicado em 2009, e o atual, que consta como v.29, n. 10, de
outubro de 2012 e lançado ao público no dia 23 de novembro de 2012, o que mais
gostaria de localizar nessa nova fase da Revista seria o embate intelectual não
somente entre os grupos conservadores com àqueles que estavam mais sintonizados
com a mudança social e a transformação da mentalidade cultural, mas as
diferenças também no próprio campo que esses últimos se encontravam.
Passou
a ser lugar-comum a bipolaridade entre direita e esquerda e entre conservadores
e progressistas, cuja miopia dos que fizeram ou apoiaram o golpe civil-militar
de 1964 tratou logo de colocar os que se opunham ao seu movimento “democrático”
como “comunistas” – é bom dizer que isso
já vinha bem antes do golpe e só foi reforçado –, passando a utilizar mais
adiante termos como “terroristas” e outros termos na linguagem universalizada e
propugnada pela ideologia da segurança nacional e sua longa lista de
“instituições” que tentavam dar
legitimidade ao seu ideário.
O
primeiro número não apontou sistemática e pontualmente a posição da Revista
Estudos Universitários – e o Serviço de Extensão Cultural (SEC) da então
Universidade do Recife (UR) – na sua autenticidade e na posição crítica que
assumia com um outro movimento que também envolvia intelectuais na temática que
ambos trabalhavam ao mesmo tempo, como é o campo educacional e, em especial, o
chamado Movimento de Cultura Popular (MCP).
É
importante frisar que sei das limitações editorais da Revista, que não terá
condições de fazer um balanço de toda a sua trajetória dentro da própria
Revista em um ou dois números, mas ao longo de vários, pois o espaço também
deve ser destinado a tantos outros temas.
Eis
que o atual número da Revista finalmente
começou a trazer tal discussão de uma maneira mais incisiva, principalmente nos
textos de memórias dos participantes da fase inicial da revista, embora mais
uma vez com exceção de Luiz Costa Lima, que curiosamente não tem sido
questionado a esse respeito e assim não teve a oportunidade de tratar do mesmo.
A
unanimidade no debate do pessoal do SEC com o mundo intelectual recifense
daquele período certamente é em relação à contraposição com Gilberto Freyre,
que não só não abria espaço para intelectuais que discordava de suas ideias, mas
os combatia das maneiras menos elegantes e utilizando-se de todo e qualquer
expediente não no sentido de defender suas ideias, mas de aniquilar pessoal e
intelectualmente quem discordasse de si e não comungasse de sua cartilha
conservadora e reacionária.
No
caso do MCP, que consideramos que estava no mesmo campo político, com o mesmo
viés inovador e num nível de debate intelectual
salutar com os membros do SEC, o conjunto de discordâncias também eram
enormes se comparamos com as que tinham a Gilberto Freyre, que estavam mais na
questão de formato, de posição intelectual
e de espaços de intervenção.
Nesse
sentido a entrevista que fiz com Luiz Costa Lima em 2005 é de grande
importância, porque ele traz os detalhes desse nível de divergência intelectual
entre os membros do SEC e do MCP. Mas antes de me deter naquilo que obtive
especialmente para uma pesquisa sobre o movimento estudantil recifense,
gostaria de tratar do que foi trazido no novo número da Revista Estudos sobre
tal questão.
O
Artigo “Sonho, pesadelo e retomada”, que foi assinado por Juracy Andrade, é o inicialmente vai a um ponto fundamental no que estou
analisando:
“Devido a divergências pedagógicas com
Germano Coelho, que dirigia o MCP, Paulo Freire se afastou do movimento e criou
o SEC, a convite do reitor João Alfredo. Ali teve oportunidade e apoio para
aperfeiçoar e aplicar seu método revolucionário de alfabetização a partir de
palavras geradoras e também para estruturar o mais amplo e abrangente Sistema
Paulo Freire de Educação” (p. 172).
O
artigo de Juracy também levanta uma questão fundamental. Que o SEC e o MCP convergiam
na neutralização do prestígio do então considerado por muitos como o maior
intelectual da terra, Gilberto Freyre:
“Como Celso Furtado disse, numa conversa
com Paulo Freire de que participei (objetivo: falar a ele sobre o SEC), o
Nordeste já se referia diretamente à Europa. Personalidades e políticos vinham
aqui ver o que estava acontecendo, sem pagar pedágio no Rio ou São Paulo. E
aqui chegando, não iam beijar a mão de Gilberto Freyre, como acontecia
tradicionalmente, procuravam o superintendente da Sudene Celso Furtado, Paulo
freire, o governador Miguel Arraes, o prefeito Pelópidas Silveira, Paulo Rosas”
(p. 172-173).
O
texto de Roberto Motta intitulado “Jomard, Luís, Gilberto, Paulo Et al.: fragmentos da memória”, que vem
de seus cadernos de diários e memórias e foi delicadamente adaptado para a
ocasião, talvez veio na hora certa pelo menos para aquilo que tento
problematizar no texto, que é a contraposição intelectual no mesmo campo
político do qual o SEC fazia parte juntamente com o MCP.
E
não é que me surpreendo ao fazer a leitura, pois Mauro inicialmente começa a
tacar fogo em cima de Gilberto Freyre antes de alinhavar sua análise em cima do
MCP, que pela ordem do seu diário, foi escrito em maio de 1999:
“Criou-se o Movimento de Cultura Popular.
Não, leitor querido, eu não vou de modo algum contar a história desse
movimento. Eu me sentia estranho e receoso diante do MCP. Primeiro, porque eu
dele não participava, nem a ele fazia falta. Segundo, porque aquele movimento,
com slogans como “no Recife cultura é movimento popular”, parecia condenar toda
a ideia de cultura com que eu me
identificava. Entre outras coisas, essa
concepção compreendia o gosto pela música clássica, que eu ia muitas vezes
escutar na discoteca do Departamento de Documentação e Cultura (DDC),
imediatamente abolida em proveito de outras iniciativas do MCP” (p. 188).
É
interessante relembrar no texto de Mauro Motta que no concurso para catedrático
de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do
Recife, Paulo Freire perdeu a vaga para a Professora Maria do Carmo Miranda,
que anos depois estaria no gabinete do Reitor João Alfredo em reunião com Luiz
Costa Lima defendendo a exclusão dele da Revista Estudos Universitários por
causa de um desaforo à figura de Gilberto Freyre. A grande questão é se ela
estava ali a serviço de Freyre, que nas palavras de Roberto Motta sobre ele
deixa inquestionável que ele “não suportava nenhuma glória que dele não
derivasse” (p. 192).
“Sobre o MCP, o leitor se interessar
pode perfeitamente ler as teses e os livros que possam já existir, ou virem a
existir. Mas penso que seria melhor ler os jornais da época, dia a dia. Eu aqui
estou quase exclusivamente confiando em
minha memória. Agora, eu vou mexer numa casa de marimbondos, que é o
relacionamento entre, de um lado, Paulo Freire, o SEC por ele dirigido, e sua
brilhante equipe e, do outro, o MCP. Eu não vou agora reler a tese de concurso
de Paulo Freire, Educação e Realidade Nacional, mas sei que seu ideário apresentava afinidades com o do MCP (...) O ideário de P.F. apresentava,
sim, afinidades com o do MCP. É verdade e não me desdigo. Mas, leitura feita,
fico achando que são menores do que eu pensava”
(p. 189-190)
Não
vou entrar nos conceitos que Mauro Motta traz em seguida, pois embora a questão
educacional suscitasse um bom debate de concepções que o SEC ou o MCP
apresentavam, o fato é que a questão do intelectual e sua posição passa ser
mais interessante para os objetivos deste texto..
O
fato é que as divergências sobre a atuação do intelectual e o seu papel no
aumento da consciência crítica da população oriunda de grupos desprivilegiados
mantinham MCP e SEC em campos opostos, conforme nos aduz o depoimento de Luiz
Costa Lima que realizei e estou republicando novamente em livro:
“O amigo – um dos raros que
se manteve depois do golpe - Jomard Muniz de Britto, em texto publicado no livro de Osmar
Fávero intitulado “Cultura popular, educação popular, memórias dos anos 60” (Edições Graal, 1983), refere-se
às divergências entre o SEC e o MCP. Seu entendimento é
absolutamente certo. Divergíamos quanto à concepção do intelectual. Para o MCP,
assim como para o CPC da UNE, o intelectual era tido como guia das massas.
Embora essa concepção seja entre nós tão velha quanto o positivismo do século
XIX, sem dúvida sua base era a política cultural stalinista. (Lembro-me, por
contraste, dos textos de Trotski, que, embora longe estivesse de ser
especialista em literatura, tinha a capacidade de intuir em um romance difícil
e politicamente ambíguo como o Voyage
au bout de la nuit, de Céline, um anarquismo difuso que poderia se
encaminhar para um lado ou outro, e que terminaria, depois de Trotski morto, no
fascismo que se conhece). Como eu tinha aprendido, por meus anos na Espanha
franquista, o que significava o dirigismo cultural e como pouco se distinguia
do fascismo, participei de uma linha de resistência ao dirigismo oba-oba tanto
do MCP, quanto do CPC da UNE. Talvez encontrem-se ecos dessa posição nos
artigos que eu escrevia para Última
Hora – jornal que, se bem me lembro, foi empastelado nos primeiros dias
do golpe. Mais difícil será encontrar os artigos que Sebastião Uchoa Leite
escrevia para serem lidos na Rádio Universitária. Terão sido seus arquivos
preservados?”
A ação efetiva do trabalho do
MCP e do SEC e duas discordâncias
ganhavam contornos mais ou menos fortes dependendo da área a qual nos
referimos, como é o caso do teatro:
“Dada a importância política que tinha o
Recife de então, seria proveitosa uma pesquisa nos jornais da época e, se
sobreviveram, nas gravações da Rádio. Tal pesquisa seria ainda útil para se
perceber o tom de vingança eufórica então assumido pelos vitoriosos. O fato é
que nossa discordância com o MCP se concretizava fundamentalmente nas propostas
para o teatro. Lembro-me que, um pouco antes do golpe, constituíamos um grupo
para ler e discutir peças de teatro, de que fazia parte José Wilker, depois um
famoso ator. Só alguns anos depois, formulei o que me aproximara da iniciativa
de Paulo e o que, embora toscamente, procurei desenvolver com a revista Estudos Universitários, em um ensaio
intitulado “O Sistema intelectual brasileiro”, que publiquei em Dispersa demanda”.
Também as leituras do pessoal do SEC distinguia enormemente do que
o pessoal do MCP lia, que eram muito voltada aos autores franceses, cuja visão
de mundo e constructo intelectual trazem lá significativas formas de ver, de
pensar e de atuar no mundo:
“Que autores mais líamos? De Lukács lembro
bem que sabíamos distinguir o primeiro Lukács, o da Teoria do romance e
de um ensaio precioso, nunca traduzido para o português, A Alma e as formas,
do Lukács, “convertido”, verdadeiro "cristão novo", que era o que
mais se lia no Brasil. Lukács, Lucien Goldmann e um certo Walter Benjamin, aos
quais fomos introduzidos por sua primeira tradução para o francês por um suíço
que viveu pelo menos um ano no Recife, Pierre Furter. (Há na revista Estudos
Universitários, um artigo dele muito bom - lamentavelmente, cheio de erros
gráficos, que dá uma idéia bastante nítida do que nos separava da posição do
MCP e do CPC). Acrescento ainda: essa divergência nos tinha aproximado de
Haroldo de Campos. Mas este foi um contato que permaneceu apenas comigo. Não
creio que conhecêssemos Gramsci. Sartre, sim, era leitura geral. Mas a
fundamentação para a divergência contra o dirigismo ao menos eu o encontrava
melhor nos livros de ensaios de Merleau-Ponty e no sociólogo norte-americano
Wright Mills”.
A ação empreendida
pelos dois grupos já por si só indicava uma diferenciação que tomava não só a
obra do grupo, mas a institucionalização de todo um trabalho a partir da
Universidade do Recife (UR), consideração que o debate sobre educação,
emancipação social, desenvolvimento, democracia, realidade nacional e tantas
outras noções estavam prontamente articuladas nos projetos que cada um deles
carregava:
“No texto acima citado, Jomard, criticou o Livro de Leituras para Adultos do
MCP, por ter "frases tão óbvias e assustadoras". Embora tenha uma idéia
muita vaga do livro, lembro um episódio que bem assinala por que o Livro de leituras assim nos parecia.
Depois de encenada uma peça do MCP em um morro do Recife, levantou-se um senhor
e perguntou algo como se estavam querendo lhe ensinar a ser pedreiro; e ele
acrescentava que nisso era ele que podia ensinar aos atores... Mas isso não
podia ser aprendido pela “esquerda didática”, isto é, aquela que acreditava que
os intelectuais deviam saber de antemão o que o povo deveria repetir. Diga-se
de passagem: se a “esquerda didática” desapareceu, em troca, os agentes
mediáticos e os autores que escrevem livros de olho em sua vendagem os
substituíram com muito maior eficácia. Algo de semelhante ao aumento de
eficiência do sistema carcerário da ditadura”.
Luiz Costa Lima tenta repensar
o papel da revista e o contributo dos intelectuais que a faziam:
“Se me pergunto, a propósito da revista que
secretariava, se ela representava seu papel de propor o intelectual como
formulador de perguntas novas, deveria dizer apenas que ela o tentava, e bem
toscamente. Isto é, sem o golpe iniciativas daquele tipo seriam obrigadas a
amadurecer. Do contrário, rapidamente estariam sincronizadas com nosso sistema
intelectual, adorador de diluições e formulações vagas. Isso digo para que não
se mitifique o que fazíamos. O que fazíamos era apenas uma tentativa contra a
retórica burocrática ou o tom lírico-conservador perpetuado por Gilberto
Freyre. Longe entretanto estávamos de realizar algo de duradouro. Essa rebelião tosca contudo era bastante para
que a grande maioria dos intelectuais da terra não tivesse contato com o SEC.
Havia poucas exceções”.
O relato de Costa
Lima também não deixa dúvida quanto ao experimentalismo ou empirismo naquilo
que faziam, pois pela idade e a situação que viviam (deslocados) nem sempre era
possível absorver e propor interferências intelectuais a partir do SEC diante
de um terreno árido ou em construção:
“Na última discussão de que participei na
Escola de Engenharia, alguém me perguntava se estava propondo uma terceira via
– nem o capitalismo, nem o socialismo stalinista. Não sei o que respondi. Mas
provavelmente a pergunta apontava para o rumo certo, pois então um autor que eu
lia muito era o sociólogo Wright Mills. O decisivo estava na formulação da
pergunta e, como prova de que estávamos aquém do que nos propúnhamos, que eu,
nem ninguém de meu conhecimento, soubesse que terceira via seria essa. Éramos
guiados apenas por nossa indignação com a desigualdade do país. Daí a tentação
do voluntarismo. Ela conduziria, nos primeiros dias do golpe, quando ainda se
achava que era possível haver resistência, a situações em que, não fosse a
sorte, poderia ter sido morto. Não tendo sido trágicas, recordo-as como
cômicas. Elas não merecem ser escritas”.
Esses vieses acerca da constituição de
um discurso sobre o papel do intelectual e a construção de um projeto para a
sociedade brasileira que passasse pela inclusão de camadas historicamente
excluídas socialmente e culturalmente certamente ajudam a compreender a ação
política, intelectual ou acadêmica daqueles personagens no início dos anos 1960
um pouco mais adiante, embora a ditadura civil-militar fizesse com que muitas
carreiras fossem modificadas e tantos rumos tivessem sido alterados de sua rota
pretendida.