MATARAM UM ESTUDANTE QUE PODIA SER SEU PRÓPRIO IRMÃO, FILHO
OU MESMO VOCÊ: OU QUANDO A POLÍTICA NÃO É VOLTADA AO CIDADÃO
Por Otávio Luiz Machado*
“A morte de cada homem me diminui, porque sou parte do
gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram
por ti” (John Downe).
A
perda de alguém sempre é traumática, principalmente quando esse alguém se vai
sem que as pessoas saibam o que de fato aconteceu para que essa perda se
concretizasse. O fenômeno do fim com a morte ou do início com a vida balizam a
existência humana, sendo as experiências nesse interstício socialmente
compreendidas representadas pelo que fizemos, tivemos, sonhamos, somos,
construímos, compartilhamos e deixamos, que são marcas que não se apagam com
tanta facilidade.
Mas
toda a existência de uma pessoa tentou ser apagada, anulada e desmarcada na
semana passada em Recife, porque mais uma vez a figura humana virou um
prontuário redigido apressadamente, pois se ignorou questões importantes que
fazem toda a diferença para os que contracenavam com um estudante negro e
originário de setores desprivilegiados da sociedade, como é o caso do
tratamento digno e humano para um ser humano que não é só osso e carne, e sim
um sujeito histórico, um cidadão de direitos e alguém que é alguém para tantos
outros.
O
estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Raimundo Matias Dantas Neto (mais conhecido como Samambaia) entraria para a
“estatística” dos afogamentos na Praia de Boa Viagem mesmo diante de tantas
evidências de que ele foi na verdade assassinado. Um jovem de 25 anos, no
último ano do curso de graduação, que começaria a ministrar aulas no próximo
mês e seria o primeiro de sua família a ostentar um diploma de graduação
universitária. Saiu de sua casa na periferia do Grande Recife para comprar um
computador e não voltou mais vivo. No IML conseguiram apenas informar que sua
morte foi por afogamento, embora ele tivesse as roupas rasgadas, escoriações
pelo corpo e o seu cabelo todo recortado.
A
música indicada acima tocou num ponto importante, que foi de tratar um ser
humano como ninguém. De colocar um evidente caso de homicídio como “Zémicídio” (para
aqueles ao qual o Estado trata como “Zé Ninguém”).
Os
agentes públicos não tiveram o mínimo interesse em gastar tempo, os
equipamentos necessários e o material disponível financiado por tanta gente do
povo para buscar identificar o que poderia ter realmente acontecido com o
estudante Raimundo Matias. Era só mais um ou menos um, o que não fazia
diferença alguma!
Tornou-se
mais traumática ainda e é revoltante, quando o Estado que virou suas costas
para algo que a priori teria o dever de zelar, como o direito à vida, à justiça,
à verdade e à dignidade da pessoa humana, o que no caso do estudante Raimundo
Matias (o Samambaia) foi negado tudo isso.
O
Estado, quando imediatamente tratou o caso como afogamento e não como possível
homicídio, também naturalizou a desigualdade social, os preconceitos, o ódio de
classe e a invisibilidade do outro que vem de espaços disprivilegiados. Que
pode ser percebida igualmente nas torturas dos adolescentes nos órgãos de
ressocialização, no consumo do crack que infestou todo o território sem a
devida atenção do Estado para a resolução desse problema, na violência
crescente contra negros, mulheres e homossexuais que não sensibiliza os
gestores públicos para se criar políticas públicas mais efetivas e arrojadas
para o seu enfrentamento. É o mesmo Estado que permite os seus cidadãos
utilizarem o transporte público AMONTOADOS diariamente, o que lembra os
comboios nazistas transportando os judeus para os campos de concentração. E
tantos outros exemplos de HUMILHAÇÃO sistemática dos cidadãos.
É
possível que os agentes públicos envolvidos também quisessem interromper o aumento
das estatísticas de homicídios, porque para eles não serão os negros das periferias
que vão estragar a boa imagem do governo que espalha por todo canto que um novo
Pernambuco surge porque o governador é gestor público eficiente, disciplinado,
trabalhador, excelente articulador político e está deixando tudo às mil
maravilhas.
O
descaso explícito nesse caso por se tratar de um negro da periferia aponta que
em outras circunstâncias poderiam até inventar um suposto “suicídio” ou um simples
“acidente”, nunca um caso de omissão ou de ineficiência de uma política que
desprotege as pessoas.
Quando
estive presente ao velório e ao enterro do Samambaia pude ver nos olhos e
rostos dos seus familiares o quanto o sentimento de cidadania dão muita luz
mesmo nesse momento de intensa tristeza. Vi também nos olhos dos seus amigos e
colegas muita disposição de lutar com a família de Samambaia para que a justiça
seja feita. Vi no choro das crianças que acompanharam os últimos momentos da
presença do corpo de Samambaia entre nós uma forte esperança de que no chão
encharcado por tantas lágrimas irá brotar um castelo fortificado em nome da
democracia, dos direitos humanos, da paz e da justiça social.
Também
pude conhecer nesses dias um pouco da família de Samambaia, da história de vida
de todos e como seus valores éticos estão evidenciados naquilo que estão
fazendo para devolver ao ente querido assassinado uma imagem pública como ela
realmente é, que é a de um jovem esforçado, promissor, cidadão de bem e um
amante da vida que foi assassinado por atos de extrema brutalidade. Na simultânea
firmeza e fineza da movimentação da mão da irmã da Samambaia (quando escrevia
os dados de nascimento, o nome completo e a data do enterro dele na massa de
cimento recém colocada) percebi uma gente de fibra que não se entrega mesmo nos
momentos mais difíceis e dolorosos, cuja capacidade de superação para enfrentar
adversidades advém do amor à vida e aos seus.
É
importante dizer aos familiares, amigos e colegas que o caso de Samambaia não
será esquecido tão cedo se depender de toda uma rede de colaboração que foi
criada para exigir respostas convincentes para uma morte trágica cercada de
tantos mistérios.
Também
não poderemos ficar somente no terreno da indignação, da revolta e da denúncia
do caso. È preciso construir atividades que rompam a barreira de invisibilidade
e de não-reconhecimento social a que tantos Raimundos estão submetidos sem
medo, sem pudor e com disposição de enfrentar muitas incompreensões pelo
caminho. Foi o que fizemos quando levamos adolescentes e jovens em conflito com
a lei para se apresentar na abertura de um importante congresso que organizamos
na UFPE em 2010 sobre juventudes (e tantas outras ações sobre a periferia), o
que para alguns era pura perda de tempo por se tratar de pessoas incorrigíveis. Eles mostraram lados bons de sua existência.
Ali
diante de autoridades e de tantas pessoas presentes à abertura eles puderam
mostrar o seu valor se valorizando a si mesmos, o que gerou produção de
cidadania. É preciso romper a lógica de que não é possível mudar as coisas e
que não vale a pena lutar porque não tem mais jeito.
É
complicado mudar toda uma sociedade utilizando-se do argumento de que já estou
fazendo a minha parte e que os outros façam a sua, porque “nada é suficiente
desde que o Todo seja deficiente” (Aldous Huxley). Várias instituições que
podem mobilizar todo um conjunto de ideias, projetos e ações precisam ser
reinventadas e refundadas. A universidade precisa não só fazer a sua parte, mas
também mobilizar com seus debates que são transdisciplinares, seus
conhecimentos produzidos nos mais diversos níveis e seus profissionais formados
nas mais diversas áreas as forças sociais a desempenhar tarefas e missões que
efetivem um projeto de sociedade diferente do que aí está. Nesse ínterim está
muito distante do que efetivamente precisa ser feito, porque perdeu liderança,
protagonismo e energias ao longo de sua história. Até cursos de humanidades não
cumprem seu papel com atividades de extensão ou de intervenção social junto às
comunidades e seus moradores por causa da extrema burocratização das
instituições e do profundo fosso que separa a universidade do conjunto da
sociedade. Sem contar o desvio de recursos e pessoas que deveriam atender as
juventudes pernambucanas indo para o ralo ou para os bolsos individuais de
alguns espertalhões. A humanização não pode ser circunscrita à teoria.
Não se pode esperar que o próximo crime nas
mesmas circunstâncias tome conta das manchetes de jornais para que façamos
algo. È preciso existir criatividade, compromisso público, gestões integradas
eficientes e uma agenda positiva permanente no sentido de construir saídas para
essa barbárie cotidiana a que todos nós estamos submetidos e na qual podemos
ser também vitimizados.
Tantas
pessoas como nós faremos ações para colaborar, ficando também à disposição da
família de Samambaia para sermos convocados em qualquer dia, horário ou
ocasiões em que se fizerem necessárias e para o que for preciso.
Quem
souber informações que podem ajudar a elucidar o assassinato do estudante
Samambaia que colabore com as autoridades. Não podemos nos omitir, nunca, pois
senão aí estaremos sendo cúmplices ao alimentarmos a lógica do
não-reconhecimento do outro com sua banalização e hipocrisia. Vamos adiante! A
perda da vida de Samambaia não pode ser em vão!