quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

OPINIÃO: MATARAM UM ESTUDANTE QUE PODIA SER SEU PRÓPRIO IRMÃO, FILHO OU MESMO VOCÊ (Por Otávio Luiz Machado)





MATARAM UM ESTUDANTE QUE PODIA SER SEU PRÓPRIO IRMÃO, FILHO OU MESMO VOCÊ: OU QUANDO A POLÍTICA NÃO É VOLTADA AO CIDADÃO

Por Otávio Luiz Machado*

“A morte de cada homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti” (John Downe).

A perda de alguém sempre é traumática, principalmente quando esse alguém se vai sem que as pessoas saibam o que de fato aconteceu para que essa perda se concretizasse. O fenômeno do fim com a morte ou do início com a vida balizam a existência humana, sendo as experiências nesse interstício socialmente compreendidas representadas pelo que fizemos, tivemos, sonhamos, somos, construímos, compartilhamos e deixamos, que são marcas que não se apagam com tanta facilidade.



Mas toda a existência de uma pessoa tentou ser apagada, anulada e desmarcada na semana passada em Recife, porque mais uma vez a figura humana virou um prontuário redigido apressadamente, pois se ignorou questões importantes que fazem toda a diferença para os que contracenavam com um estudante negro e originário de setores desprivilegiados da sociedade, como é o caso do tratamento digno e humano para um ser humano que não é só osso e carne, e sim um sujeito histórico, um cidadão de direitos e alguém que é alguém para tantos outros.
O estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Raimundo Matias Dantas Neto (mais conhecido como Samambaia) entraria para a “estatística” dos afogamentos na Praia de Boa Viagem mesmo diante de tantas evidências de que ele foi na verdade assassinado. Um jovem de 25 anos, no último ano do curso de graduação, que começaria a ministrar aulas no próximo mês e seria o primeiro de sua família a ostentar um diploma de graduação universitária. Saiu de sua casa na periferia do Grande Recife para comprar um computador e não voltou mais vivo. No IML conseguiram apenas informar que sua morte foi por afogamento, embora ele tivesse as roupas rasgadas, escoriações pelo corpo e o seu cabelo todo recortado.
A música indicada acima tocou num ponto importante, que foi de tratar um ser humano como ninguém. De colocar um evidente caso de homicídio como “Zémicídio” (para aqueles ao qual o Estado trata como “Zé Ninguém”). 

Os agentes públicos não tiveram o mínimo interesse em gastar tempo, os equipamentos necessários e o material disponível financiado por tanta gente do povo para buscar identificar o que poderia ter realmente acontecido com o estudante Raimundo Matias. Era só mais um ou menos um, o que não fazia diferença alguma!
Tornou-se mais traumática ainda e é revoltante, quando o Estado que virou suas costas para algo que a priori teria o dever de zelar, como o direito à vida, à justiça, à verdade e à dignidade da pessoa humana, o que no caso do estudante Raimundo Matias (o Samambaia) foi negado tudo isso.
O Estado, quando imediatamente tratou o caso como afogamento e não como possível homicídio, também naturalizou a desigualdade social, os preconceitos, o ódio de classe e a invisibilidade do outro que vem de espaços disprivilegiados. Que pode ser percebida igualmente nas torturas dos adolescentes nos órgãos de ressocialização, no consumo do crack que infestou todo o território sem a devida atenção do Estado para a resolução desse problema, na violência crescente contra negros, mulheres e homossexuais que não sensibiliza os gestores públicos para se criar políticas públicas mais efetivas e arrojadas para o seu enfrentamento. É o mesmo Estado que permite os seus cidadãos utilizarem o transporte público AMONTOADOS diariamente, o que lembra os comboios nazistas transportando os judeus para os campos de concentração. E tantos outros exemplos de HUMILHAÇÃO sistemática dos cidadãos.
É possível que os agentes públicos envolvidos também quisessem interromper o aumento das estatísticas de homicídios, porque para eles não serão os negros das periferias que vão estragar a boa imagem do governo que espalha por todo canto que um novo Pernambuco surge porque o governador é gestor público eficiente, disciplinado, trabalhador, excelente articulador político e está deixando tudo às mil maravilhas.
O descaso explícito nesse caso por se tratar de um negro da periferia aponta que em outras circunstâncias poderiam até inventar um suposto “suicídio” ou um simples “acidente”, nunca um caso de omissão ou de ineficiência de uma política que desprotege as pessoas.
Quando estive presente ao velório e ao enterro do Samambaia pude ver nos olhos e rostos dos seus familiares o quanto o sentimento de cidadania dão muita luz mesmo nesse momento de intensa tristeza. Vi também nos olhos dos seus amigos e colegas muita disposição de lutar com a família de Samambaia para que a justiça seja feita. Vi no choro das crianças que acompanharam os últimos momentos da presença do corpo de Samambaia entre nós uma forte esperança de que no chão encharcado por tantas lágrimas irá brotar um castelo fortificado em nome da democracia, dos direitos humanos, da paz e da justiça social. 
Também pude conhecer nesses dias um pouco da família de Samambaia, da história de vida de todos e como seus valores éticos estão evidenciados naquilo que estão fazendo para devolver ao ente querido assassinado uma imagem pública como ela realmente é, que é a de um jovem esforçado, promissor, cidadão de bem e um amante da vida que foi assassinado por atos de extrema brutalidade. Na simultânea firmeza e fineza da movimentação da mão da irmã da Samambaia (quando escrevia os dados de nascimento, o nome completo e a data do enterro dele na massa de cimento recém colocada) percebi uma gente de fibra que não se entrega mesmo nos momentos mais difíceis e dolorosos, cuja capacidade de superação para enfrentar adversidades advém do amor à vida e aos seus.
         É importante dizer aos familiares, amigos e colegas que o caso de Samambaia não será esquecido tão cedo se depender de toda uma rede de colaboração que foi criada para exigir respostas convincentes para uma morte trágica cercada de tantos mistérios.
          Também não poderemos ficar somente no terreno da indignação, da revolta e da denúncia do caso. È preciso construir atividades que rompam a barreira de invisibilidade e de não-reconhecimento social a que tantos Raimundos estão submetidos sem medo, sem pudor e com disposição de enfrentar muitas incompreensões pelo caminho. Foi o que fizemos quando levamos adolescentes e jovens em conflito com a lei para se apresentar na abertura de um importante congresso que organizamos na UFPE em 2010 sobre juventudes (e tantas outras ações sobre a periferia), o que para alguns era pura perda de tempo por se tratar de pessoas incorrigíveis. Eles mostraram lados bons de sua existência.

Ali diante de autoridades e de tantas pessoas presentes à abertura eles puderam mostrar o seu valor se valorizando a si mesmos, o que gerou produção de cidadania. É preciso romper a lógica de que não é possível mudar as coisas e que não vale a pena lutar porque não tem mais jeito.
É complicado mudar toda uma sociedade utilizando-se do argumento de que já estou fazendo a minha parte e que os outros façam a sua, porque “nada é suficiente desde que o Todo seja deficiente” (Aldous Huxley). Várias instituições que podem mobilizar todo um conjunto de ideias, projetos e ações precisam ser reinventadas e refundadas. A universidade precisa não só fazer a sua parte, mas também mobilizar com seus debates que são transdisciplinares, seus conhecimentos produzidos nos mais diversos níveis e seus profissionais formados nas mais diversas áreas as forças sociais a desempenhar tarefas e missões que efetivem um projeto de sociedade diferente do que aí está. Nesse ínterim está muito distante do que efetivamente precisa ser feito, porque perdeu liderança, protagonismo e energias ao longo de sua história. Até cursos de humanidades não cumprem seu papel com atividades de extensão ou de intervenção social junto às comunidades e seus moradores por causa da extrema burocratização das instituições e do profundo fosso que separa a universidade do conjunto da sociedade. Sem contar o desvio de recursos e pessoas que deveriam atender as juventudes pernambucanas indo para o ralo ou para os bolsos individuais de alguns espertalhões. A humanização não pode ser circunscrita à teoria.
 Não se pode esperar que o próximo crime nas mesmas circunstâncias tome conta das manchetes de jornais para que façamos algo. È preciso existir criatividade, compromisso público, gestões integradas eficientes e uma agenda positiva permanente no sentido de construir saídas para essa barbárie cotidiana a que todos nós estamos submetidos e na qual podemos ser também vitimizados.
Tantas pessoas como nós faremos ações para colaborar, ficando também à disposição da família de Samambaia para sermos convocados em qualquer dia, horário ou ocasiões em que se fizerem necessárias e para o que for preciso.
Quem souber informações que podem ajudar a elucidar o assassinato do estudante Samambaia que colabore com as autoridades. Não podemos nos omitir, nunca, pois senão aí estaremos sendo cúmplices ao alimentarmos a lógica do não-reconhecimento do outro com sua banalização e hipocrisia. Vamos adiante! A perda da vida de Samambaia não pode ser em vão!

*É educador, pesquisador, escritor e documentarista. E-mail: otaviomachado3@yahoo.com.br