terça-feira, 27 de novembro de 2012

OPINIÃO: O número de lançamento da Revista na comemoração dos 50 anos e o avanço na histografia sobre sua própria origem (Por Otávio Luiz Machado)


O número de lançamento da Revista na comemoração dos 50  anos e o avanço na histografia sobre sua própria origem

* Otávio Luiz Machado


Após fazer uma leitura criteriosa de dois números da Revista Estudos Universitários, o da refundação publicado em 2009, e o atual, que consta como v.29, n. 10, de outubro de 2012 e lançado ao público no dia 23 de novembro de 2012, o que mais gostaria de localizar nessa nova fase da Revista seria o embate intelectual não somente entre os grupos conservadores com àqueles que estavam mais sintonizados com a mudança social e a transformação da mentalidade cultural, mas as diferenças também no próprio campo que esses últimos se encontravam.
Passou a ser lugar-comum a bipolaridade entre direita e esquerda e entre conservadores e progressistas, cuja miopia dos que fizeram ou apoiaram o golpe civil-militar de 1964 tratou logo de colocar os que se opunham ao seu movimento “democrático” como “comunistas” –  é bom dizer que isso já vinha bem antes do golpe e só foi reforçado –, passando a utilizar mais adiante termos como “terroristas” e outros termos na linguagem universalizada e propugnada pela ideologia da segurança nacional e sua longa lista de “instituições”  que tentavam dar legitimidade ao seu ideário.
O primeiro número não apontou sistemática e pontualmente a posição da Revista Estudos Universitários – e o Serviço de Extensão Cultural (SEC) da então Universidade do Recife (UR) – na sua autenticidade e na posição crítica que assumia com um outro movimento que também envolvia intelectuais na temática que ambos trabalhavam ao mesmo tempo, como é o campo educacional e, em especial, o chamado Movimento de Cultura Popular (MCP).
É importante frisar que sei das limitações editorais da Revista, que não terá condições de fazer um balanço de toda a sua trajetória dentro da própria Revista em um ou dois números, mas ao longo de vários, pois o espaço também deve ser destinado a tantos outros temas.
Eis que o atual número da Revista  finalmente começou a trazer tal discussão de uma maneira mais incisiva, principalmente nos textos de memórias dos participantes da fase inicial da revista, embora mais uma vez com exceção de Luiz Costa Lima, que curiosamente não tem sido questionado a esse respeito e assim não teve a oportunidade de tratar do mesmo.
A unanimidade no debate do pessoal do SEC com o mundo intelectual recifense daquele período certamente é em relação à contraposição com Gilberto Freyre, que não só não abria espaço para intelectuais que discordava de suas ideias, mas os combatia das maneiras menos elegantes e utilizando-se de todo e qualquer expediente não no sentido de defender suas ideias, mas de aniquilar pessoal e intelectualmente quem discordasse de si e não comungasse de sua cartilha conservadora e reacionária.
No caso do MCP, que consideramos que estava no mesmo campo político, com o mesmo viés inovador e num nível de debate intelectual  salutar com os membros do SEC, o conjunto de discordâncias também eram enormes se comparamos com as que tinham a Gilberto Freyre, que estavam mais na questão de formato, de posição intelectual  e de espaços de intervenção.
Nesse sentido a entrevista que fiz com Luiz Costa Lima em 2005 é de grande importância, porque ele traz os detalhes desse nível de divergência intelectual entre os membros do SEC e do MCP. Mas antes de me deter naquilo que obtive especialmente para uma pesquisa sobre o movimento estudantil recifense, gostaria de tratar do que foi trazido no novo número da Revista Estudos sobre tal questão.
O Artigo “Sonho, pesadelo e retomada”, que foi assinado por Juracy Andrade,  é o inicialmente  vai a um ponto fundamental no que estou analisando:
“Devido a divergências pedagógicas com Germano Coelho, que dirigia o MCP, Paulo Freire se afastou do movimento e criou o SEC, a convite do reitor João Alfredo. Ali teve oportunidade e apoio para aperfeiçoar e aplicar seu método revolucionário de alfabetização a partir de palavras geradoras e também para estruturar o mais amplo e abrangente Sistema Paulo Freire  de Educação” (p. 172).

O artigo de Juracy também levanta uma questão fundamental. Que o SEC e o MCP convergiam na neutralização do prestígio do então considerado por muitos como o maior intelectual da terra, Gilberto Freyre:

“Como Celso Furtado disse, numa conversa com Paulo Freire de que participei (objetivo: falar a ele sobre o SEC), o Nordeste já se referia diretamente à Europa. Personalidades e políticos vinham aqui ver o que estava acontecendo, sem pagar pedágio no Rio ou São Paulo. E aqui chegando, não iam beijar a mão de Gilberto Freyre, como acontecia tradicionalmente, procuravam o superintendente da Sudene Celso Furtado, Paulo freire, o governador Miguel Arraes, o prefeito Pelópidas Silveira, Paulo Rosas” (p. 172-173).

O texto de Roberto Motta intitulado “Jomard, Luís, Gilberto, Paulo Et al.: fragmentos da memória”, que vem de seus cadernos de diários e memórias e foi delicadamente adaptado para a ocasião, talvez veio na hora certa pelo menos para aquilo que tento problematizar no texto, que é a contraposição intelectual no mesmo campo político do qual o SEC fazia parte juntamente com o MCP.
E não é que me surpreendo ao fazer a leitura, pois Mauro inicialmente começa a tacar fogo em cima de Gilberto Freyre antes de alinhavar sua análise em cima do MCP, que pela ordem do seu diário, foi escrito em maio de 1999:

“Criou-se o Movimento de Cultura Popular. Não, leitor querido, eu não vou de modo algum contar a história desse movimento. Eu me sentia estranho e receoso diante do MCP. Primeiro, porque eu dele não participava, nem a ele fazia falta. Segundo, porque aquele movimento, com slogans como “no Recife cultura é movimento popular”, parecia condenar toda a ideia  de cultura com que eu me identificava. Entre  outras coisas, essa concepção compreendia o gosto pela música clássica, que eu ia muitas vezes escutar na discoteca do Departamento de Documentação e Cultura (DDC), imediatamente abolida em proveito de outras iniciativas do MCP” (p. 188).

É interessante relembrar no texto de Mauro Motta que no concurso para catedrático de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife, Paulo Freire perdeu a vaga para a Professora Maria do Carmo Miranda, que anos depois estaria no gabinete do Reitor João Alfredo em reunião com Luiz Costa Lima defendendo a exclusão dele da Revista Estudos Universitários por causa de um desaforo à figura de Gilberto Freyre. A grande questão é se ela estava ali a serviço de Freyre, que nas palavras de Roberto Motta sobre ele deixa inquestionável que ele “não suportava nenhuma glória que dele não derivasse” (p. 192).

“Sobre o MCP, o leitor se interessar pode perfeitamente ler as teses e os livros que possam já existir, ou virem a existir. Mas penso que seria melhor ler os jornais da época, dia a dia. Eu aqui estou  quase exclusivamente confiando em minha memória. Agora, eu vou mexer numa casa de marimbondos, que é o relacionamento entre, de um lado, Paulo Freire, o SEC por ele dirigido, e sua brilhante equipe e, do outro, o MCP. Eu não vou agora reler a tese de concurso de Paulo Freire, Educação e Realidade Nacional, mas sei   que seu ideário apresentava afinidades com  o do MCP (...) O ideário de P.F. apresentava, sim, afinidades com o do MCP. É verdade e não me desdigo. Mas, leitura feita, fico achando que são menores do que eu pensava”  (p. 189-190)

Não vou entrar nos conceitos que Mauro Motta traz em seguida, pois embora a questão educacional suscitasse um bom debate de concepções que o SEC ou o MCP apresentavam, o fato é que a questão do intelectual e sua posição passa ser mais interessante para os objetivos deste texto..
O fato é que as divergências sobre a atuação do intelectual e o seu papel no aumento da consciência crítica da população oriunda de grupos desprivilegiados mantinham MCP e SEC em campos opostos, conforme nos aduz o depoimento de Luiz Costa Lima que realizei e estou republicando novamente em livro:

“O amigo – um dos raros que se manteve depois do golpe - Jomard Muniz de Britto, em texto publicado no livro de Osmar Fávero intitulado “Cultura popular, educação popular, memórias dos anos 60” (Edições Graal, 1983), refere-se às divergências entre o SEC e o MCP. Seu entendimento é absolutamente certo. Divergíamos quanto à concepção do intelectual. Para o MCP, assim como para o CPC da UNE, o intelectual era tido como guia das massas. Embora essa concepção seja entre nós tão velha quanto o positivismo do século XIX, sem dúvida sua base era a política cultural stalinista. (Lembro-me, por contraste, dos textos de Trotski, que, embora longe estivesse de ser especialista em literatura, tinha a capacidade de intuir em um romance difícil e politicamente ambíguo como o Voyage au bout de la nuit, de Céline, um anarquismo difuso que poderia se encaminhar para um lado ou outro, e que terminaria, depois de Trotski morto, no fascismo que se conhece). Como eu tinha aprendido, por meus anos na Espanha franquista, o que significava o dirigismo cultural e como pouco se distinguia do fascismo, participei de uma linha de resistência ao dirigismo oba-oba tanto do MCP, quanto do CPC da UNE. Talvez encontrem-se ecos dessa posição nos artigos que eu escrevia para Última Hora – jornal que, se bem me lembro, foi empastelado nos primeiros dias do golpe. Mais difícil será encontrar os artigos que Sebastião Uchoa Leite escrevia para serem lidos na Rádio Universitária. Terão sido seus arquivos preservados?”

A ação efetiva do trabalho do MCP e do SEC  e duas discordâncias ganhavam contornos mais ou menos fortes dependendo da área a qual nos referimos, como é o caso do teatro:

“Dada a importância política que tinha o Recife de então, seria proveitosa uma pesquisa nos jornais da época e, se sobreviveram, nas gravações da Rádio. Tal pesquisa seria ainda útil para se perceber o tom de vingança eufórica então assumido pelos vitoriosos. O fato é que nossa discordância com o MCP se concretizava fundamentalmente nas propostas para o teatro. Lembro-me que, um pouco antes do golpe, constituíamos um grupo para ler e discutir peças de teatro, de que fazia parte José Wilker, depois um famoso ator. Só alguns anos depois, formulei o que me aproximara da iniciativa de Paulo e o que, embora toscamente, procurei desenvolver com a revista Estudos Universitários, em um ensaio intitulado “O Sistema intelectual brasileiro”, que publiquei em Dispersa demanda”.

Também as leituras do pessoal do SEC distinguia enormemente do que o pessoal do MCP lia, que eram muito voltada aos autores franceses, cuja visão de mundo e constructo intelectual trazem lá significativas formas de ver, de pensar e de atuar no mundo:

“Que autores mais líamos? De Lukács lembro bem que sabíamos distinguir o primeiro Lukács, o da Teoria do romance e de um ensaio precioso, nunca traduzido para o português, A Alma e as formas, do Lukács, “convertido”, verdadeiro "cristão novo", que era o que mais se lia no Brasil. Lukács, Lucien Goldmann e um certo Walter Benjamin, aos quais fomos introduzidos por sua primeira tradução para o francês por um suíço que viveu pelo menos um ano no Recife, Pierre Furter. (Há na revista Estudos Universitários, um artigo dele muito bom - lamentavelmente, cheio de erros gráficos, que dá uma idéia bastante nítida do que nos separava da posição do MCP e do CPC). Acrescento ainda: essa divergência nos tinha aproximado de Haroldo de Campos. Mas este foi um contato que permaneceu apenas comigo. Não creio que conhecêssemos Gramsci. Sartre, sim, era leitura geral. Mas a fundamentação para a divergência contra o dirigismo ao menos eu o encontrava melhor nos livros de ensaios de Merleau-Ponty e no sociólogo norte-americano Wright Mills”.

         A ação empreendida pelos dois grupos já por si só indicava uma diferenciação que tomava não só a obra do grupo, mas a institucionalização de todo um trabalho a partir da Universidade do Recife (UR), consideração que o debate sobre educação, emancipação social, desenvolvimento, democracia, realidade nacional e tantas outras noções estavam prontamente articuladas nos projetos que cada um deles carregava:

“No texto acima citado, Jomard, criticou o Livro de Leituras para Adultos do MCP, por ter "frases tão óbvias e assustadoras". Embora tenha uma idéia muita vaga do livro, lembro um episódio que bem assinala por que o Livro de leituras assim nos parecia. Depois de encenada uma peça do MCP em um morro do Recife, levantou-se um senhor e perguntou algo como se estavam querendo lhe ensinar a ser pedreiro; e ele acrescentava que nisso era ele que podia ensinar aos atores... Mas isso não podia ser aprendido pela “esquerda didática”, isto é, aquela que acreditava que os intelectuais deviam saber de antemão o que o povo deveria repetir. Diga-se de passagem: se a “esquerda didática” desapareceu, em troca, os agentes mediáticos e os autores que escrevem livros de olho em sua vendagem os substituíram com muito maior eficácia. Algo de semelhante ao aumento de eficiência do sistema carcerário da ditadura”.

Luiz Costa Lima tenta repensar o papel da revista e o contributo dos intelectuais que a faziam:

“Se me pergunto, a propósito da revista que secretariava, se ela representava seu papel de propor o intelectual como formulador de perguntas novas, deveria dizer apenas que ela o tentava, e bem toscamente. Isto é, sem o golpe iniciativas daquele tipo seriam obrigadas a amadurecer. Do contrário, rapidamente estariam sincronizadas com nosso sistema intelectual, adorador de diluições e formulações vagas. Isso digo para que não se mitifique o que fazíamos. O que fazíamos era apenas uma tentativa contra a retórica burocrática ou o tom lírico-conservador perpetuado por Gilberto Freyre. Longe entretanto estávamos de realizar algo de duradouro.  Essa rebelião tosca contudo era bastante para que a grande maioria dos intelectuais da terra não tivesse contato com o SEC. Havia poucas exceções”.

         O relato de Costa Lima também não deixa dúvida quanto ao experimentalismo ou empirismo naquilo que faziam, pois pela idade e a situação que viviam (deslocados) nem sempre era possível absorver e propor interferências intelectuais a partir do SEC diante de um terreno árido ou em construção:

“Na última discussão de que participei na Escola de Engenharia, alguém me perguntava se estava propondo uma terceira via – nem o capitalismo, nem o socialismo stalinista. Não sei o que respondi. Mas provavelmente a pergunta apontava para o rumo certo, pois então um autor que eu lia muito era o sociólogo Wright Mills. O decisivo estava na formulação da pergunta e, como prova de que estávamos aquém do que nos propúnhamos, que eu, nem ninguém de meu conhecimento, soubesse que terceira via seria essa. Éramos guiados apenas por nossa indignação com a desigualdade do país. Daí a tentação do voluntarismo. Ela conduziria, nos primeiros dias do golpe, quando ainda se achava que era possível haver resistência, a situações em que, não fosse a sorte, poderia ter sido morto. Não tendo sido trágicas, recordo-as como cômicas. Elas não merecem ser escritas”.


         Esses vieses acerca da constituição de um discurso sobre o papel do intelectual e a construção de um projeto para a sociedade brasileira que passasse pela inclusão de camadas historicamente excluídas socialmente e culturalmente certamente ajudam a compreender a ação política, intelectual ou acadêmica daqueles personagens no início dos anos 1960 um pouco mais adiante, embora a ditadura civil-militar fizesse com que muitas carreiras fossem modificadas e tantos rumos tivessem sido alterados de sua rota pretendida.

*É educador, pesquisador, escritor e documentarista. E-mail: otaviomachado3@yahoo.com.br

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